Era uma manhã silenciosa de terça-feira. Ouvia-se só o barulho do ventilador de teto ligado na velocidade média e a respiração leve de Penélope. Às 5h30 o silêncio foi interrompido bruscamente: “You are the Dancing Queen. Young and sweet only seventeen. Dancing queen, feel the beat from the tambourine, oh yeah!” Que idéia besta, colocar uma música animada como despertador. Não se animou, só levou um susto mesmo.
Caramba, eram 5h30 e ainda era noite lá fora. Penélope olhou pro Peixoto. Tinha inveja dele. Aquele peixe gordo só fazia dormir. Se sentia irritada, com raiva do mundo. Não tinha motivo. Era puro mau-humor. Seria um dia daqueles, sabe? Daqueles péssimos e irritantes. Tipo um daqueles dias em que se anda pela rua, tranquilamente e aí uma criancinha idiota (sempre tem uma criancinha idiota) grita desesperada: “Eeek! Mamãe, a mulher tem cabelo azul!” Não é uma merda quando isso acontece com a pessoa?
Enquanto pensava sobre banalidades, Penélope perdeu a conta de quantas colheres de açúcar tinha colocado no café. Não se importou, afinal, sete colheres não deviam ser tão diferentes de duas... Será que tinham sido só sete? Hmmmm. O café terminou ficando bem esquisito.
Sentiu um cheiro estranho. Ah, não. Fumaça! A porcaria da torrada tinha virado carvão. Guardou a torrada na geladeira. Mais tarde ela serviria de adubo pra Nemo, o cacto, ou de comida pra Peixoto, o peixe.
No caminho pro ponto de ônibus ouviu música. Às vezes passava a irritação. Paula, George e aquele outro cara que ninguém lembra o nome cantaram: “Vem amor que a hora é essa. Vê se entende a minha pressa...” É, se nem Kid Abelha animou é porque a coisa tava feia.
Chegou ao ponto de ônibus às cinco pras sete. O ônibus passava às 7h03. Estranho, Não tinha nenhum rosto familiar esperando o ônibus. Uma mulher falava alguma coisa do outro lado. “Que coisa, esse ônibus! Quando não atrasa, adianta! Agora é esperar o de 7h26, fazer o que...”
Santa falta de sorte, Batman. Penélope esperaria, então. Não que tivesse muita opção... Às 7h19 ela o viu. Não o ônibus, mas o Olhos-Azuis. Precisava ser melosa e lírica por uns minutos. Ele tinha olhos de um azul claro quase transparente. A luz oblíqua e suave da manhã batia nos seus olhos, que brilhavam como duas águas marinhas perfeitamente lapidadas. As sobrancelhas escuras e fortes contrastavam com os olhos suaves. Os cabelos pretos caiam de leve sobre a testa. Os dentes eram perfeitos e brancos, a pele morena.
Quando Olhos-Azuis caminhou em sua direção Penélope ficou meio abestada, literalmente boquiaberta. Ele parou em pé ao seu lado. Seus olhos tão azuis olhando no fundo dos olhos dela, tão pretos. Ele entrelaçou os dedos pelos cachos azuis dos cabelos dela. Ela passou a mão pelos seus cabelos pretos. A beijou com firmeza, empurrando-a de leve contra a lateral do ponto de ônibus. Beijou sua nuca, murmurou palavras doces em seu ouvido...
Patético, Penélope, patético! Envergonhada pela sua imaginação excessivamente ativa, Penélope tossiu de leve, abaixou a cabeça para tentar disfarçar o rubor das bochechas, coloco o cabelo atrás da orelha, pôs as mão nos bolsos e ficou torcendo os pés. A sua rotina do embaraço. Não tinha chances nem de falar com o rapaz...
Finalmente o ônibus chegou. Quando foi subir, tropeçou e caiu. Todas as dezessete moedinhas de cinco centavos, seis de dez centavos, cinco de um centavo e uma de cinqüenta centavos rolaram pelo chão do ônibus. Trinta e quatro moedas espalhadas e desgovernadas.
“Pode deixar, eu pago pra você.” Olhos-Azuis estava falando com ela. Que coisa! Recolheram o maior número possível de moedas. Ele sentou no banco ao lado do seu. Conversaram. Francisco. Esse era seu nome. Aquela terça-feira saíram pra comprar biscoitinhos de baunilha, os preferidos de Penélope. E assim o fizeram por muitas e muitas outras terças-feiras.